A dor provocada por tragédias como a ocorrida neste final de semana
na cidade de Santa Maria sacode a sociedade como um terremoto,
despertando alguns de nossos melhores e piores sentimentos. Um
acontecimento brutal e estúpido que tira a vida de 233 pessoas joga a
todos em um espaço estranho, onde a dor indescritível dos familiares e
amigos das vítimas se mistura com a perplexidade de todos os demais.
Como pode acontecer uma tragédia dessas? A boate estava preparada para
receber tanta gente? Tinha equipamentos de segurança e saídas de
emergência? Quem são os responsáveis?
Essas são algumas das inevitáveis perguntas que começaram a ser
feitas logo após a consumação da tragédia? E, durante todo o domingo,
jornalistas e especialistas de diversas áreas ocuparam os meios de
comunicação tentando respondê-las. As redes sociais também foram tomadas
pelo evento trágico. Os indícios de negligência e falhas básicas de
segurança já foram apontados e serão objeto de investigação nos próximos
dias. Mas há outra dimensão desse tipo de tragédia que merece atenção.
É uma dimensão marcada, ao mesmo tempo, por silêncio, presença e
exaltação da vida. O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, disse
na tarde deste domingo que o momento não era de buscar culpados, mas
sim de prestar apoio e solidariedade às milhares de pessoas mergulhadas
em uma profunda dor. Não é uma frase fácil de ser dita por uma
autoridade uma vez que a busca por culpados já estava em curso na
chamada opinião pública. E tampouco é uma frase óbvia. Ela guarda um
sentido mais profundo que aponta para algo que, se não representa uma
cura imediata para a dor, talvez expresse o melhor que se pode oferecer
para alguém massacrado pela perda, pela ausência, pela brutalidade de um
acontecimento trágico: presença, cuidado, atenção, uma palavra.
Quem já perdeu alguém em um acontecimento trágico e brutal sabe bem
que o caminho da consolação é longo, tortuoso e, não raro, desesperador.
E é justamente aí que emerge uma das melhores qualidades e
possibilidades humanas: a solidariedade, o apoio imediato e
desinteressado e, principalmente, a celebração do valor da vida e do
amor sobre todas as demais coisas. A vida é mais valiosa que a
propriedade, o lucro, os negócios e todas nossas ambições e
mesquinharias. Na prática, não é essa escala de valores que predomina no
nosso cotidiano. Vivemos em um mundo onde o direito à vida é,
constantemente, sobrepujado por outros direitos. Tragédias como a de
Santa Maria nos arrancam desse mundo e nos jogam em uma dimensão onde as
melhores possibilidades humanas parecem se manifestar: o Estado e a
sociedade, as pessoas, isolada e coletivamente, se congregam numa
comunhão terrena para tentar consolar os que estão sofrendo. Não é
nenhuma religião, apenas a ideia de humanidade se manifestando.
Uma tragédia como a de Santa Maria não é nenhuma fatalidade: é obra
do homem, resultado de escolhas infelizes, decisões criminosas. Nossa
espécie, como se sabe, parece ter algumas dificuldades de aprendizado.
Nietzsche escreveu que muito sangue foi derramado até que as primeiras
promessas e compromissos fossem cumpridos. É impossível dizer por
quantas tragédias dessas ainda teremos que passar. Elas se repetem, com
variações mais ou menos macabras, praticamente todos os dias em alguma
parte do mundo e contra o próprio planeta.
Talvez nunca aprendamos com elas e sigamos convivendo com uma
sucessão patética de eventos desta natureza, aguardando a nossa vez de
sermos atingidos. Mas talvez tenhamos uma chance de aprendizado. Uma
pequena, mas luminosa, chance. E ela aparece, paradoxalmente, em meio a
uma sucessão de más escolhas, sob a forma de uma imensa onda de
compaixão e solidariedade que mostra que podemos ser bem melhores do que
somos, que temos valores e sentimentos que podem construir um mundo
onde a vida seja definida não pela busca de lucro, de ambições
mesquinhas e bens materiais tolos, mas sim pela caminhada na estrada do
bom, do verdadeiro e do belo. A morte nos deixa sem palavras. Mas ela
nos diz, insistentemente: é preciso, sempre, cuidar dos vivos e da vida.