O Rio Grande do Sul é a unidade da federação com maior dívida
proporcional no País; ou seja a dívida não só ultrapassa a arrecadação,
mas também os limites impostos pela LRF; segundo o Banco Central, a
dívida gaúcha passa dos R$ 51 bilhões; o último relatório da Secretaria
Estadual da Fazenda, atualizado com números do final de 2014, aponta o
valor em R$ 54, bilhões; pagando 13% da receita do Estado para a União,
todos os meses os gaúchos entregam R$ 280 milhões e veem a dívida
crescer a juros de 6%, conforme acordo assinado em 1998 durante o
governo de Antônio Britto (PMDB); mas quando foi que tudo isso começou?
veja na reportagem de Fernanda Canofre, do Sul 21, site parceiro do 247
Fernanda Canofre, Sul 21
- No centro da crise econômica que abala governo e a vida dos gaúchos,
oposição e situação concordam sobre a vilã: a dívida pública do Estado. O
Rio Grande do Sul é a unidade da federação com maior dívida
proporcional no país. Ou seja, aqui, a dívida não só ultrapassa a
arrecadação, mas também os limites impostos pela Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF).
Segundo o Banco Central, a dívida gaúcha passa dos R$ 51 bilhões. O
último relatório da Secretaria Estadual da Fazenda, atualizado com
números do final de 2014, aponta o valor em R$ 54.795.035.721,39.
Pagando 13% da receita do Estado para a União, todos os meses entregamos
R$ 280 milhões e vemos a dívida crescer a juros de 6%, conforme acordo
assinado em 1998 durante o governo de Antônio Britto (PMDB). Mas onde
foi que tudo isso começou?
Nesta terça-feira (4), ao voltar do recesso na Assembleia
Legislativa, os deputados se revezaram na tribuna tentando encontrar o
culpado pela situação atual das finanças do Estado. As críticas se
concentraram nas duas últimas gestões, de Tarso Genro (PT) e José Ivo
Sartori (PMDB). A história, no entanto, começou bem antes deles. Como a
CPI da Dívida Pública da União, Estados e Municípios na Câmara apontou
no seu relatório final, em 2010, quando falamos da dívida pública no
Brasil, "não se pode ignorar o contexto histórico e econômico que deu
origem" a ela.
É como uma bola de neve que vem se acumulando descida abaixo há mais
de 40 anos. O Dividômetro, calculado pela Auditoria Pública Cidadã e
atualizado pela última vez em 15 de julho de 2015, aponta que a dívida
de Estados e Municípios com a União chega a: R$ 3.585.829.906.868,44.
1960-1970: Era de financiamentos, era de ditadura
Os anos de chumbo se fundaram através de financiamento no Brasil.
Seis anos depois do golpe, na explosão do “milagre econômico”, os
militares encontraram na dívida de títulos o principal meio de
financiamento do governo, junto ao capital de terceiros. Os créditos, no
entanto, eram contratados sem nenhuma transparência. “Os documentos
omitem, na maioria das vezes, o agente credor e as condições dessas
operações, como a taxa de juros incidente, as despesas operacionais,
acréscimos e o número de parcelas da amortização”, explica a
coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, em entrevista ao site do Senado.
No Rio Grande do Sul, nossas primeiras apólices de dívida, apareceram
um pouco antes. No início dos anos 1950, o governo de Ernesto Dornelles
recorreu a empréstimos para financiar obras de estradas. Seu sucessor,
Leonel Brizola, criou títulos de baixo valor para financiar a construção
das brizoletas – as escolas de madeira espalhadas pelo interior do
Estado, no seu projeto de erradicação do analfabetismo. Porém, a dívida
dessa época se manteve abaixo do valor arrecadado pelo Estado.
“Ocorre que até 1964, as operações de crédito não eram corrigidas e
pesavam pouco sobre as finanças estaduais. O dinheiro arrecadado com
impostos superava o valor dos papéis e, assim, não havia desequilíbrio
no caixa”, explica Rachel Duarte em um texto publicado em seu blog no Sul21.
“Mas a Ditadura Militar, na onda do ‘milagre econômico’, afrouxou as
restrições ao endividamento e estimulou os estados a buscarem
empréstimos externos”. Foi aí, com o governo de Euclides Triches e a
emissão de títulos públicos com correção monetária, que a dívida gaúcha
passou a aumentar graças a um novo acompanhamento: os juros. No governo
Triches a variação da dívida chegaria a 194.4%.
A instalação do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), do governo
de Castelo Branco, e a reforma tributária trazida por ele também
deixaram estados ainda mais dependentes de outras formas de
financiamento. No RS, o governo do Estado passou a usar a emissão de
títulos como meio de rolagem para a dívida, chegando a 7% da arrecadação
em 1967.
Para Luiz Augusto Faria, economista da Fundação de Economia e
Estatística (FEE) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), é nesse momento que está a gênese da dívida pública gaúcha.
“Na década de 70, diminui a arrecadação e há aumento dos gastos, por
ser uma época de crescimento”. Ou seja, é neste período, que o governo
passa a administrar com desequilíbrio no orçamento, o chamado déficit
público. O RS fecha a década com média de inflação de 2,3% ao mês,
investimentos públicos ocupando cerca de 30% da dívida e déficit público
de 6%.
1980: A década perdida
A década de 1980 é chamada por muitos de “década perdida”
na América Latina. Se por um lado, democracia e movimentos sociais
floresceram no fim de ditaduras, para a economia o quadro foi de
devastação. Num cenário de hiperinflação e estagnação econômica, o
Brasil chegou a ter 4 moedas naqueles dez anos: cruzeiro, cruzado,
cruzado novo e cruzeiro novamente, em 1990.
No Rio Grande do Sul, não foi diferente. De 1979 a 1989, a dívida
pública do Estado cresceu cerca de quatro vezes – passou de 4,3% para
17,2%. “A gente tem queda do crescimento, consequentemente uma queda da
arrecadação. Isso fez a dívida continuar aumentando. Nesse período
também começa a avolumar a Previdência, antes os funcionários eram
jovens e esse problema não existia”, afirma Luiz Augusto Faria.
Em 1983, o Banco Central aplica uma resolução que impõe teto para
operações de crédito realizadas com setor público prevendo sanções a
quem desrespeitasse a regra. Isso aumentou o controle do governo federal
sobre o nível de endividamento dos estados. É neste ano que começam as
primeiras tentativas de renegociação entre a União e os Estados. As
dívidas adquiridas pelo Rio Grande do Sul através do acordo deste
período, só foram quitadas 25 anos depois, durante o governo de Yeda
Crusius (PSDB). Com a redução para as operações de crédito, o governo de
Pedro Simon (PMDB) opta por tirar dinheiro de investimentos no âmbito
social para suportar a dívida.
“Eu fiquei dois anos no governo, não quis ficar mais porque a gente
tinha preparado um plano técnico muito ambicioso para o governo e vi que
aquele plano não iria a diante”, conta Cláudio Accurso, que ocupou a
cadeira de secretário de Planejamento de Simon. A gestão do peemedebista
ainda teve de suportar outro golpe: a isenção de Imposto sobre
Circulação de Mercadorias (ICM) para exportações e importações de
produtos primários, imposta pelo governo federal. “Para o Estado foi
ruim porque diminuía os recursos que a gente imaginava que ia ter. Mas
era uma tentativa de estímulo à economia”.
Paulo Garselaz, em um trabalho publicado na UFRGS – “Dívida Pública: Uma abordagem teórica, um relato histórico e o caso do Rio Grande do Sul”
– aponta que com as rolagens consumindo quase todas as receitas da
emissão de títulos e o crédito externo praticamente inacessível, o único
caminho foi da dívida flutuante com altas taxas de juros e prazos
reduzidos. “A relação Dívida Total/Receita Corrente Líquida, que no
início da década era de 75,28% elevou-se gradativamente, até alcançar,
no final da década, o índice de 356,52%, marca jamais alcançada até
então”, escreve ele.
A Constituição de 1988 tentou aumentar a arrecadação incluindo
serviços ao ICM, que passou a ser ICMS. “Não adiantou nada, porque a
despesa continuou crescendo”, diz Faria.
1990: Anos de renegociação e acordo
Nos anos 1990, a situação que já era de crise se agrava ainda mais. Em 1991, como lembra Rachel Duarte,
na tentativa de frear o crescente endividamento dos estados, o
Congresso Nacional estabeleceu que os saldos devedores deveriam ser
refinanciados com os agentes financeiros. Na prática isso significou que
governos deveriam tomar novos empréstimos junto a seus credores que
cobrissem os anteriores. O governo federal proibiu ainda a emissão de
novos títulos, o que desvalorizou aqueles já existentes e colocou os
estados de vez nas mãos da política econômica da União.
Para o economista Darcy Santos, o acúmulo de anos em déficit
primário, na média de 15% da receita corrente líquida estourou neste
ponto. “Toda a década de 1990 os juros foram muito altos. O governo
federal afrouxava os controles de desligamento. Resumindo: déficit
primário, afrouxamento dos controles e juros altos. Isso explica até
1998 [o aumento da dívida]”, afirma. No entanto, até aqui, a inflação
ajudava a mascarar os efeitos da dívida.
“Com a inflação, o governo conseguia encontrar financiamentos de
mecanismo inflacionário: atrasava pagamentos de funcionários, dava um
reajuste um pouco abaixo, conseguia empurrar com a barriga a situação
fiscal”, explica o economista e ex-presidente da FEE, Adalmir Marquetti.
Em 1994, a criação do Plano Real elevou os juros ainda mais, como
medida do governo para controlar a inflação e segurar a taxa de câmbio.
As dívidas públicas chegaram a aumentar em até duas vezes, sem que
governos assumissem novos empréstimos, os juros colocaram estados no
prego. Isso é confirmado no relatório da CPI da Dívida Pública, da
Câmara dos Deputados, que afirma: “O comportamento das dívidas
estaduais, antes de sua assunção pelo governo federal, foi afetado de
maneira decisiva pela política de juros reais elevados implantada após o
Plano Real e tornou inevitável um novo programa de refinanciamento,
desta vez em caráter definitivo”.
No Rio Grande do Sul, o governo de Antônio Britto (PMDB) se
financiava quase inteiramente no setor privado, onde as taxas eram ainda
mais elevadas, segundo o economista Adalmir Marquetti. “Tinha um
governo querendo fazer uma série de coisas e mesmo privatizando a dívida
aumentou bastante”, explica ele. “Outro problema é que o governo
Britto, em 1995, deu um aumento salário bastante elevado aos servidores.
Deu aumento a partir de uma expectativa inflacionária que não se
confirmou: a inflação foi muito mais baixa do que pensavam”. Sem que o
Estado conseguisse bancar parte dos aumentos, os funcionários entraram
na Justiça, com processos sendo cobrados até hoje pela chamada Lei
Britto.
A situação era insustentável quando o governo federal de Fernando
Henrique Cardoso (PSDB) chegou com a “salvação”: o Programa de Apoio à
Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados. Um programa de federalização
da dívida, conhecido como Acordo de 1998. Através dele, a União
adquiria a dívida mobiliária – títulos – dos estados por um contrato
único, com juros de 6% ao ano a serem corrigidos através da tabela de
IGP-DI (Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna). O contrato
vinha com mais condições. “Vários governos estaduais no processo de
renegociação, se comprometeram a fazer determinadas privatizações. A
renegociação envolveu outras questões que implicaram a redução do papel
do Estado na economia”, explica Marquetti.
Aqui, outras medidas acompanharam a renegociação assinada por Britto.
O Programa de Demissões Voluntárias (PDV), por exemplo, foi
implementado para diminuir a folha de pagamento do funcionalismo
público. E as privatizações. “Vem a solução mágica das privatizações
para resolver o problema e a dívida continuou crescendo. Cresceu muito
no governo Britto porque é o período que caiu a inflação, caiu a
receita. Como ele resolveu usar o dinheiro das privatizações em outras
coisas – os incentivos fiscais da Ford e da GM vieram do dinheiro ganho
com a CRT – a dívida foi aumentando”, conta Faria.
Marquetti afirma que a renegociação deixou o Estado “administrável”.
“No momento ela foi importante, porque permitiu estabilizar a relação
dívida-PIB. Naquele período deveria ser feito um acordo. A gente pode
criticar os termos”, diz ele.
A situação mudou apenas um ano depois da assinatura do acordo: o
IGP-DI, que no contrato era indexador da dívida, se descolou e seguiu
aumentando, enquanto as taxa de juros baixaram. “Foi concedida uma
alternativa para os estados, mas isso deixou um saldo por fora. Os
resíduos [porcentagem da dívida que Estado não conseguia pagar] ficaram
muito grandes e receberam de novo correção monetária e juros”, avalia
Darcy Santos. “Ficava uma parcela de resíduos, esse resíduo ia para o
saldo devedor, recebia de novo juros e reajuste pelo IGP-DI, que cresceu
38% da inflação. É por isso que se paga, se paga e não acaba nunca de
pagar”, diz Santos.
O tema de uma nova renegociação ressurgiu. “Todo contrato tem que
prever uma cláusula de equilíbrio econômico. Esse foi o problema”,
defende o economista.
2000: A dívida cobra juros
Apesar de estabilizar a dívida, o acordo de 1998 significou corte de
investimentos em áreas como saúde, educação e segurança. Quando Olívio
Dutra (PT) assumiu o governo, o RS ainda tinha uma parte do acordo por
cumprir: a venda do banco do Estado, o Banrisul. Como o governo decidiu
não seguir com a privatização, foi submetido a multa pesada pelo governo
federal: “Acima dos 15,4% que já estávamos pagando”, lembrou Olívio
Dutra em entrevista.
O governador passou então para a negociação com o Judiciário. “Fomos
renegociar com o judiciário. Conseguimos unir os governadores de outros
estados no Palácio Piratini e debatemos com o Ministério da Fazenda”,
conta Olívio. O petista conseguiu manter o Banrisul e ainda reduziu a
receita que era destinada para pagamento da dívida de 15,4% para 12,5%.
Quatro anos depois de Olívio sair do governo, Yeda Crusius (PSDB) se
elegeu com a pauta de chegar ao “déficit zero” da dívida, o que de fato
aconteceu. No segundo ano de seu mandato, no entanto, estourou a crise
econômica mundial de 2008 e a meta foi abandonada.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sobre o
acordo de 1998 dez anos depois, afirma que os estados do acordo que não
promoveram ajuste fiscal, se tornaram reféns da Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF) e do governo federal. O estudo aponta o Rio Grande do Sul
como caso, afirmando que tem se mostrado “incapacidade de implantar
administrações efetivas e eficientes”. “O Estado do Rio Grande do Sul,
por exemplo, possui um elevado índice de autonomia fiscal, mas se mantém
preso às limitações fiscais impostas pela LRF. É um caso típico de
estado que não implantou um Programa de Ajuste Fiscal bem-sucedido e que
sobrevive nos últimos 12 anos em crise financeira latente”, diz o documento.
No ano passado, governadores e prefeitos, entre eles o então
governador Tarso Genro (PT), conseguiram que o governo federal
aceitasse renegociar a dívida. A proposta aprovada troca o IGP-DI, como
indexador, para taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e de
Custódia) ou IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), o que
se mantiver menor no período, e baixa os juros de 6¢ para 4% ao ano. Na
prática, isso permite que o Estado tenha crédito no mercado para novos
empréstimos. Resta a renegociação ser reconhecida pelo Ministério da
Fazenda.
Os prefeitos Eduardo Paes (PMDB) e Fernando Haddad (PT),
respectivamente de Rio de Janeiro e São Paulo, entraram com processos na
Justiça contra a União exigindo que seja reconhecido nova correção para
contas dos municípios.
“Essa dívida é um acúmulo de déficits, aí começa toda a questão. Como
é que a gente vai gastar mais do que recebe? Vai se endividando”,
afirma Cláudio Accurso destacando que é difícil manejar 40 anos de
déficits orçamentários. “O ideal seria regredir essa negociação até a
assinatura do contrato. Mas o governo federal não vai aceitar, senão os
outros estados que já pagaram vão querer algum outro favor”, coloca
Darcy Santos.
Para Adalmir Marquetti, enquanto o Estado não tratar de questões
estruturais, todo o resto será “perfumaria”. “Eu tenho que buscar um
mecanismo para resolver o problema da dívida junto ao governo federal e
encontrar alguma forma de resolver o problema do pagamento de
aposentadorias de funcionários públicos. Sem resolver essas questões,
todas as outras questões serão perfumarias. Porque a gente precisa de R$
10 bilhões por ano para fazer frente a esses pagamentos”, diz ele. “Se o
governo resolve tocar alguma privatização que renda R$ 20 bilhões, esse
valor seria suficiente para apenas dois anos e depois a situação
voltaria a ficar ruim. Pior”.
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