A avaliação é da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris),
presidente da Ajuris, Eugênio Couto Terra; sustentando que os servidores
públicos não podem ser responsabilizados pela crise financeira do
Estado, a Ajuris afirmou, em nota, que a decisão do governo de parcelar
os salários dos servidores "põe em risco o funcionamento dos serviços
públicos em geral"; segundo Couto, falta diálogo e transparência do
governo estadual; "Isso configura uma gestão de postura intransigente no
relacionamento com os Poderes, instituições e sociedade", disse a
entidade
Marco Weissheimer, Sul 21
- No dia 3 de agosto, a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
(Ajuris) divulgou uma nota de solidariedade aos servidores públicos do
Rio Grande do Sul que tiveram seus salários parcelados pelo governo José
Ivo Sartori. Sustentando que os servidores públicos não podem ser
responsabilizados pela crise financeira do Estado, a Ajuris afirmou que a
decisão do Governo de parcelar os salários dos servidores "põe em risco
o funcionamento dos serviços públicos em geral e expõe de maneira
desnecessária o funcionalismo". Além disso, criticou a falta de diálogo e
de transparência do governo estadual com o funcionalismo público e com a
sociedade como um todo, que teria sido alijada do debate sobre uma
saída para a situação do Estado. "Isso configura uma gestão de postura
intransigente no relacionamento com os Poderes, instituições e
sociedade", assinalou a entidade.
Em entrevista ao Sul21, o presidente da Ajuris, Eugênio Couto Terra,
fala sobre a crise financeira do Rio Grande do Sul e sobre o modo como o
governo do Estado vem tratando essa questão. Terra reafirma a crítica à
falta de diálogo e transparência por parte do Palácio Piratini, rejeita
a ideia de que a principal responsabilidade pela crise recaia sobre os
ombros dos servidores e estranha a ausência de iniciativas do governo
para aumentar a arrecadação do Estado. "O governo não parece estar
querendo produzir formas de sair do atual quadro de dificuldades. Parece
querer agudizar a crise. O que observamos é que o governo não faz nada
para aumentar a arrecadação e conseguir cumprir seus compromissos",
assinala.
Sul21: A Ajuris divulgou uma nota oficial na semana
passada criticando a decisão do governo José Ivo Sartori de parcelar o
salário do funcionalismo público gaúcho e a forma como o Executivo tomou
essa decisão e vem se conduzindo de um modo mais geral no debate com a
sociedade. Como a entidade está acompanhando esse processo?
Eugênio Couto Terra: O que se vê, na maneira como o
governo vem trabalhando, ou não trabalhando, é que ele vem atribuindo
uma grande responsabilidade, na propalada crise, ao funcionalismo
público, como se o problema fosse o salário dos servidores. Nós
entendemos que não é isso. Pelo contrário. Defendemos que o servidor
público é o grande capital do Estado, enquanto poder público, para fazer
com que se movimente a prestação de serviços que são atribuição desse
Estado. O servidor público é o principal patrimônio do Estado. É o
professor que dá aula lá na ponta, é o profissional que atende no posto
de saúde, o policial que trabalha nas ruas. Parcelar os salários e
anunciar no dia do parcelamento de quanto vai ser o parcelamento, sem
nenhuma estimativa anterior, é algo muito pesado, um descaso para com os
servidores. É isso o que nos preocupa centralmente.
Os servidores fazem parte de uma engrenagem do Estado como um todo,
mas não estão sendo tratados como uma prioridade. Estamos falando de
seres humanos que têm seus compromissos e que vêm vivendo em um clima de
terror desde o início o ano com as ameaças de atraso de salário. As
coisas não podem funcionar assim, com atraso de salários e
descumprimento de ordens judiciais para assegurar o pagamento de
salários.
Sul21: Como fica essa questão do descumprimento de ordens judiciais, na avaliação da Ajuris?
Eugênio Terra: No nosso entendimento, se há uma
ordem judicial determinando o pagamento de salários, que tem um caráter
alimentar, ou seja, de sobrevivência do servidor, ela tem que ser
cumprida prioritariamente. O governo pagou alguém mais, além do
servidor, para dizer que não tinha mais caixa para pagar? Há
fornecedores que receberam? Caso sim, esses fornecedores tinham decisão
judicial determinando pagamento? Nada disso está claro. Essa situação de
desconhecimento e incerteza se resume pela falta de diálogo e de
respeito com o funcionalismo e com a sociedade como um todo. O governo
não dialoga. Ameaça que vai atrasar os salários, decide parcelar os
salários e anuncia o parcelamento no dia do pagamento.
O governo alega que não tinha como anunciar os valores antes por
causa dos sequestros judiciais. Esses sequestros realmente existem, mas o
governo tem uma ideia sobre o fluxo desses processos e poderia ter uma
estimativa de valores. A culpa, então, é do Judiciário, poderá alguém
dizer. Não, a culpa não é do Judiciário. Quando há um sequestro
judicial, existe uma decisão judicial que não foi cumprida e o cidadão
tem o direito de receber aquele valor. Às vezes, esse dinheiro é
necessário para atender alguma emergência na área da saúde, algum
procedimento médico ou medicamento mais caro. O cidadão procura a
Justiça então para fazer valer o seu direito à saúde. Se o Estado,
intimado, não cumpre essa decisão, acaba ocorrendo o sequestro judicial.
Sul21: Uma das críticas mais fortes na nota da Ajuris
aponta para a falta de diálogo e transparência na condução do governo
estadual. Poderia dar alguns exemplos disso?
Eugênio Terra: Desde o início do ano, o governo não
está dialogando com a sociedade sobre o que está fazendo para enfrentar a
crise. Não adianta ficar falando do governo anterior. Cada governo tem
que fazer da sua maneira. Quem assume o governo, assume o compromisso de
gerir o serviço público, de garantir a governabilidade.
Tomemos o exemplo da dívida pública. Por que o governo, até agora,
não fez um questionamento judicial? Há uma lei já aprovada e um
indicativo do Senado sobre a necessidade de sua regulamentação. Por que o
governo não questiona isso judicialmente? Alguém sabe a resposta? A
gente sabe que o governo não quer fazer porque não faz, mas o governador
ou alguém do governo vem a público explicar as razões de não
implementar essa iniciativa, que nós mesmos e boa parte da sociedade
estamos sugerindo? Não há diálogo para explicar essas escolhas e o que
está sendo feito.
Outro exemplo, mais próximo da área jurídica, tem a ver com a
cobrança da dívida ativa. A gente sabe que há créditos que são
irrecuperáveis por uma série de fatores que não é o caso de detalhar
agora, mas o que o atual governo fez, desde que assumiu, usando os
quadros de qualidade que a PGE tem, para tentar uma discussão sobre esse
tema e sobre a possibilidade de recuperar parte desses créditos? Também
não há transparência sobre a real situação das finanças do Estado. Isso
é meio que uma caixa preta e não é só neste governo. Qual é mesmo o
tamanho do déficit público? Quando o governo Tarso Genro terminou se
anunciou um déficit de 1,4 bi. Os técnicos da Fazenda continuaram os
mesmos. No dia 31 de dezembro de 2014 o déficit era de 1,4 bi. Virou o
1º de janeiro e esse déficit, com os mesmo técnicos na Fazenda, pulou
para 5,4 bi.
Houve uma redução de despesas no atual governo. Não há nenhuma dúvida
sobre isso. Se pegarmos a área da segurança, é só andar na rua para ver
que falta policiamento. Tivemos problemas na área de medicamentos
também. Houve uma contenção de gastos. O que isso representou? Diminuiu o
déficit de 5,4 bi em quanto? Alguém ouve falar nisso? Não. Então, falta
transparência e diálogo ao governo Sartori. A sociedade civil
organizada tem que ser ouvida e, tenho certeza, tem muito a contribuir.
Dei alguns exemplos aqui de iniciativas e ideias que apoiamos. Estamos
prontos a participar de um debate sobre isso, ouvir os argumentos do
governo, apresentar os nossos e procurar avançar.
Acho que o governo deu um passo nesta direção com aquela reunião no
Palácio Piratini com representantes de outros poderes e instituições. O
governador, ao menos, parece que se deu conta de que precisa conversar e
dialogar. Creio que a resposta dos servidores, após o anúncio do
parcelamento, também fez com que ele se desse conta dessa carência de
diálogo e de que não é possível seguir com essa atitude autocrática
adotada até aqui.
No processo de votação da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), o
governo não se interessou em fazer nenhuma mediação. Todas as emendas
que foram apresentadas por diversas entidades, entre elas a Ajuris,
foram rechaçadas tanto na Comissão quanto no Plenário. Não houve nenhuma
disposição em dialogar. E pelo que a gente ouve nos corredores, não sei
se o governo dialoga sequer com a sua base parlamentar. O texto
aprovado da LDO desrespeita preceitos da Constituição Estadual, que
determina a reposição do poder de compra dos salários dos servidores, e
da Constituição Federal, que estabelece a revisão anual de vencimentos.
As estimativas apontam para uma inflação de 9% no final do ano. Pelo
texto aprovado da LDO, não haverá sequer reposição desse índice nos
salários. A Lei de Responsabilidade Fiscal não se pode contrapor ao que
diz a Constituição Federal, pois ela é uma norma infraconstitucional.
Sul21: Desde que o governo começou a falar na
possibilidade de parcelamento, várias entidades de servidores
ingressaram na Justiça contra essa medida, obtendo decisões favoráveis.
Com a confirmação do parcelamento, outras ações da mesma natureza estão
surgindo, tanto de entidades como de servidores individualmente. Isso
está gerando um passivo de decisões judiciais que não estão sendo
cumpridas pelo governo. Esse quadro não pode resultar em um problema
ainda maior no futuro?
Eugênio Terra: Essa situação quebra a ordem jurídica
estabelecida. As decisões judiciais precisam ser cumpridas. Quando uma
ordem judicial não é cumprida, pelo Executivo ou por qualquer outro
agente, ocorre uma fissura no ordenamento jurídico. O cumprimento das
decisões judiciais faz parte da civilização. O avanço civilizatório
terminou com a justiça privada e com a vigência da lei do mais forte. Se
o governo não cumpre uma ordem judicial, está criando uma instabilidade
no sistema jurídico. Não sabemos ainda qual será a decisão do Supremo
sobre essa situação, mas, em tese, ela pode gerar até intervenção
federal.
Sul21: Isso já aconteceu alguma vez?
Eugênio Terra: Aqui não. Aconteceu em alguns estados
há muito tempo. Não é uma tradição nossa, até porque às vezes há uma
impossibilidade material mesmo, mas ela precisa ser provada. Aqui no Rio
Grande do Sul, nós temos uma impossibilidade material verdadeira ou ela
é falada e não provada? No caso dos servidores do Executivo, que tinham
ordem judicial determinando o pagamento integral dos salários, alguém
mais recebeu, algum fornecedor que não tinha ordem judicial determinando
pagamento? Isso precisa ser determinado. Outra coisa a ser esclarecida
são as nomeações de CCs que o governo têm feito. Fizemos um rápido
acompanhamento e verificamos que elas têm aumentado bastante de maio
para cá. Está havendo a redução de CCs que disseram que iriam fazer? A
área de publicidade do governo não está investindo mais nada? O que o
governo está fazendo para conseguir dinheiro para pagar o funcionalismo?
Está discutindo a questão do atual modelo de concessão de incentivos
fiscais? Repito, não temos uma clareza e transparência sobre essas
questões.
Mais do que produzir a prova da impossibilidade material, o governo
não parece estar querendo produzir formas de sair do atual quadro de
dificuldades. Parece querer agudizar a crise. O que observamos é que o
governo não faz nada para aumentar a arrecadação e conseguir cumprir
seus compromissos.
Sul21: Há quem veja nesses movimentos do governo uma
estratégia de deixar a crise se agravar, com medidas como o atraso no
pagamento do funcionalismo, para justificar medidas como privatizações e
extinções de fundações e empresas do Estado. Qual sua opinião sobre
isso?
Eugênio Terra: Se eu aposto na estratégia do caos, a
solução que eu apresento parece ser a única possível. O que eu vejo é
uma inércia. Volto à questão da dívida: por que o governo não questiona
isso judicialmente a partir da nova lei aprovada. Não há retorno de
nenhum interlocutor do governo sobre porque não fazer isso. Acho que há
uma ideia de diminuição do tamanho do Estado. Não tenho a menor dúvida
em relação a esse ponto. Essa não-política de (não) aumentar a
arrecadação e de não discutir com a sociedade os problemas do Estado
leva à política de encolhimento do tamanho do Estado. O que é mais
pernicioso nesta lógica é colocar a responsabilidade da crise nas costas
do servidor público.
Nós conseguimos equacionar a questão da previdência para os novos
servidores. O sistema de capitalização que foi montado foi muito
inteligente, garantiu que a Previdência continuasse pública, com uma
contribuição paritária de empregados e do governo. Agora o governo
Sartori fala em entrar com um projeto de previdência complementar para
os novos servidores. Por que isso? Me parece que há aí um claro
interesse de privatização. O que vimos das experiências de previdência
complementar privada em países como Argentina e Chile foi que não deu
certo. Na Argentina, tiveram que estatizar. No Chile, as pessoas que
contribuíram ficaram sem nada.
Os defensores desse modelo falam que há um passivo da Previdência a
ser resolvido. Esse passivo é relativo. As pessoas trabalharam, se
aposentaram, alguns viraram pensionistas em função de uma relação de
dependência que tinham de um trabalhador que se aposentou. Se algumas
dessas pessoas, até 2009, não contribuíam é porque não havia exigência
para tanto. É um encargo do Tesouro, portanto. O Rio Grande do Sul
conseguiu chegar a uma solução para isso por meio desse novo sistema
público de capitalização. Temos um fundo com dinheiro já aplicado e com
poucos servidores, o que vai resolver o futuro. Os já aposentados eu não
consigo ver como um déficit, mas sim como uma obrigação do Tesouro. Nós
temos um grande número de aposentados, é verdade. É quase igual ao de
ativos. Isso ocorre porque, ao longo da história recente, nos
constituímos como um Estado mais civilizado e organizado enquanto
prestador de serviços. A nossa rede pública de escolas, por exemplo, é
muito antiga. E a Educação sempre demandou muitos servidores para poder
ter escolas em todos os lugares, como nós tínhamos e hoje não temos
mais. Há estados que começaram a ser organizar assim só mais
recentemente.
O mesmo se aplica à Saúde. A Constituição Federal prevê o acesso à
Saúde, essa é uma obrigação do Estado. E tem gente que vem falar em
déficit da Saúde para justificar o não cumprimento dessa obrigação. O
Estado arrecada para cumprir com essas obrigações.
Sul21: Parece que estamos vivendo um quadro de
confluência de crises. Além da crise estadual, enfrentamos também uma
crise política e econômica em nível nacional. Uma das características
dessa confluência parece ser um avanço de ideias e valores conservadores
e de ameaça a direitos humanos, sociais e trabalhistas conquistados nas
últimas décadas. Na sua opinião, estamos vivendo um avanço conservador
contra direitos no país?
Eugênio Terra: Não tenho a menor dúvida disso. O
Congresso atual é muito mais conservador do que o anterior. Soma-se a
isso uma fragilidade do governo federal, por escândalos de corrupção que
ocorreram na administração pública e pela incongruência entre o
discurso adotado na campanha eleitoral e as medidas de ajuste fiscal
implantadas no início do governo. O próprio ministro da Fazenda
escolhido não era vinculado ao que se pretendia na campanha. Tudo isso
desgastou o governo. Neste cenário, tivemos um avanço conservador no
Congresso aproveitando a desarticulação do governo.
Isso é uma situação muito séria em um sistema presidencialista como o
nosso onde o Executivo precisa ter iniciativas. O governo não está
conseguindo fazer isso. Qualquer proposta que o governo federal abraça
hoje como causa, a tendência é não ser aprovada, porque essa oposição
conservadora se une contra o governo, sem uma reflexão se isso é bom
para o país ou não. O Parlamento não pode funcionar isso. A oposição tem
que funcionar com um mínimo de racionalidade levando em conta o que é
importante para o país. A questão do impeachment é outro exemplo disso.
Tenta-se criar uma situação sem que haja, até aqui, qualquer elemento
que justifique pensar essa hipótese. É uma tentativa muito mais de
fragilizar o governo do que qualquer outra coisa.
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