Por Ildo Sauer*
A importância histórico-social da indústria petrolífera vincula-se à necessidade da apropriação, pelo modo de produção hegemônico, de formas de energia de alta disponibilidade e baixa entropia, que permitam o aumento da produtividade do trabalho. Isso produz excedentes cada vez maiores, a custos que o sistema é capaz de absorver.
O carvão poderia continuar como a fonte de energia por excelência desde a Revolução Industrial, pois é o recurso fóssil mais abundante do planeta (cerca de 4 trilhões de barris equivalentes de petróleo em reservas no globo). Entretanto, a associação entre a indústria do motor de combustão interna e a do petróleo transformou um insumo praticamente sem valor em necessidade essencial da vida moderna.
Pelas condições especiais que reúne, o petróleo permite que se use menos capital e trabalho vivo para sua apropriação, disponibilizando mais energia líquida. A expansão do automóvel como meio de transporte gerou uma demanda sustentada de produtos petrolíferos e hoje o consumo maciço mundial de petróleo destina-se ao transporte. A tendência é de aumento deste consumo. Agências de análise e empresas de energia não lidam, ainda, com a hipótese de substituição energética plena, mas sim com a necessidade de suprir o aumento da demanda por petróleo com novas descobertas, com complementação a partir de fontes renováveis e não-convencionais e com fomento à eficiência energética.
Todavia, o problema da exaustão definitiva do petróleo terá que ser encarado em breve, pois os recursos convencionais estão se exaurindo face à taxa atual de consumo, próxima dos 85 milhões de barris/dia. Isto significa que os dois trilhões de barris remanescentes de recursos convencionais conhecidos durarão apenas mais três ou quatro décadas. O enfrentamento das mudanças climáticas também exigirá posicionamento, com investimento em ciência e tecnologia para amenizar os impactos que a substituição energética terá na estrutura de produção e de consumo. E para a mudança do modelo de desenvolvimento não basta apenas vontade: é preciso desenvolver as forças produtivas, investir em novas tecnologias, para que elevem sua produtividade e, ao mesmo tempo, trabalhar para que o modelo social seja alterado.
O quão importante é o petróleo para o mundo atual?
O custo crescente de produzir petróleo deve ser analisado comparativamente. Quando a indústria do petróleo começou, no século XIX, a energia líquida disponível era de 1:100, ou seja, era gasto um barril de petróleo para obter 100 barris. Hoje a proporção é de 1:30 – é gasto em capital humano e trabalho o equivalente a um barril de petróleo para produzir apenas 30.
A fonte alternativa ao petróleo mais competitiva é o etanol brasileiro, com uma energia líquida disponível de 1:8 (biodiesel, 1:1 e fotovoltaica, 1:1). Atualmente o óleo é produzido a um custo de US$ 1 a US$ 10/barril, considerando apenas o capital e trabalho (trabalho vivo e morto) aplicados, e desconsiderando as transferências (impostos, taxas, rroyalties, participações e assemelhados). O custo direto do petróleo do pré-sal não deverá ultrapassar os US$ 15 por barril. O valor de mercado nos últimos anos variou entre US$ 60 e US$ 150/barril, o que significa um excedente (lucro) de mais de US$ 50/barril.
A renda diferencial é disputada por estados e grandes empresas. A economia mundial consome cerca de 30 bilhões de barris/ano, gerando um excedente econômico de cerca de US$ 2 trilhões/ano, para um PIB mundial de cerca de US$60 trilhões. Isso dá uma idéia do que está em jogo. O petróleo deverá manter seu elevado valor ainda por três ou quatro décadas, até a exaustão dos recursos convencionais ou a disponibilização de substituto de larga escala, cujo custo atual se situa na ordem de US$ 80 por barril equivalente. Tal expectativa somente poderá ser abalada por catástrofes políticas e econômicas na estrutura mundial de produção e circulação vigente. Quem controlar a apropriação de qualquer elo importante da cadeia desse recurso natural controlará parte do poder.
Onde está esse petróleo remanescente no planeta?
São três as fronteiras de exploração petrolífera do planeta para as próximas décadas: na Ásia Central, na África, em países como Nigéria e Sudão e, agora, no pré-sal brasileiro.
A importância política da intervenção estatal como forma de apropriar parte da renda extra criada pelo petróleo é relativamente recente. Ela surge em 1922, com a criação da YPF Argentina. Prossegue com a criação da Pemex, 1938, no México. A criação da OPEP em 1960 é outro passo na compreensão política do problema da apropriação da renda petroleira. E com os choques de preços dos anos 1973-1979 esse papel especial do petróleo se torna ainda mais evidente. Na década de 1960, o capital privado controlava 85% das reservas mundiais de petróleo, hoje, apenas 16%. O que está em disputa, não só aqui, mas em todos os cantos do mundo hoje é isso. Quem ganhará com as rendas a serem propiciadas pelos recursos do pré-sal, uma das últimas grandes fronteiras mundiais do petróleo, é o debate, ainda inconcluso, que se apresenta para a sociedade brasileira neste momento. Dimensionar o volume e pensar estrategicamente a propriedade e o valor dos recursos possibilitará apropriar socialmente os benefícios que podem ser gerados pelo pré-sal.
Para estimar grosseiramente valores, considere-se um período de extração das reservas de 40 anos, um preço médio do petróleo de US$ 75,00/barril (nos 40 anos) e um custo de extração (capital e trabalho, nos 40 anos) de US$ 15,00/barril. O excedente (renda petroleira) gerado será de US$ 60,00/barril. Se as reservas forem de 100 bilhões de barris, a extração anual será de 2,5 bilhões de barris, ou 6,85 milhões de barris/dia. Nessas condições, o excedente anual gerado seria de aproximadamente US$ 150 bi (R$ 263 bi)!! Em se duplicando, ou triplicando, o volume das reservas, o mesmo ocorre com a geração potencial da renda. Em termos comparativos, basta lembrar que toda a arrecadação de impostos pelo governo federal no ano de 2010 atingiu o valor de R$ 800 bilhões, dos quais apenas 5% destinados a investimentos… O que remete a uma reflexão adicional: qual o significado da disputa pelos royalties do pré-sal?
O que são os royalties do petróleo?
O conceito de “royalty” foi formulado por Hotelling, na década de 1920, como um prêmio a ser pago ao detentor de recursos naturais não reprodutíveis (às vezes era o rei, daí “roaylty”, o direito do soberano), em compensação por sua exaustão e sua não disponibilidade no futuro, quando poderia ter valor muito maior. No Brasil foram criadas distorções a partir do conceito adotado na Constituição de 1988, que diz em seu Artigo 20: “ São bens da União: V – os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva; VIII – os potenciais de energia hidráulica; IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo;
§ 1º – É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.”
Assim, no Brasil, o soberano, titular dos recursos é o Povo. A Lei 9478 de 1997, gerada no auge da onda neoliberal, que buscava abrir caminho para privatizar o petróleo e a Petrobras no País, adotou uma aplicação deste preceito, visando facilitar esta estratégia, concedendo benefícios às regiões mais diretamente afetadas, essencialmente o Rio de Janeiro. Isto ocorreu na década de 90, quando o preço do barril oscilava entre 15 e 20 dólares apenas, e a produção nacional era pequena. Portanto os valores esperados não guardam proporção com a situação atual. A explosão dos preços ocorrida a partir de 2005, combinada com incremento da produção, se refletiu em explosão dos royalties, de forma completamente imprevista. Trata-se de um efeito superveniente, inesperado: não pode gerar expectativa de direito adquirido…
A falsa ideia do ‘estado produtor’
O debate público concorre também para a falsificação do conceito de estado produtor. Este conceito é facilmente aplicável à produção terrestre de petróleo: estritamente são estados produtores Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará, Amazonas, Alagoas, Sergipe. Mas quando se trata produção a mais de uma centena de quilômetros da costa, em alto mar, o estado produtor é essencialmente o Estado Nacional. A descoberta e a produção são frutos de um esforço nacional de décadas, e é o País como um todo que garante a produção, em termos de segurança, logística e tecnologia e recursos humanos. Alegar que seria uma indenização por implicações ambientais, não tem base consistente, pois qualquer evento na produção off-shore terá impactos segundo a orientação das correntes marinhas, que não guardam relação com as linhas de pseudo-influência dos Estados, traçadas pelo IBGE para contabilizar a distribuições dos royalties e participações especiais. A metodologia de cálculo da distribuição utilizada atualmente simplesmente não guarda relação com princípio lógico. O mais grave porém é que os recursos originários dos royalties e participações especiais estão sendo queimados em grande medida por Estados e Municípios. Deveriam ser investidos para a criar uma infra-estrutura produtiva, educacional, tecnológica que geraria mais riqueza do que o valor futuro do próprio petróleo produzido agora, tomado às gerações futuras. Mas, em grande parte, vão para o ralo. O IDH das regiões beneficiadas está longe do refletir os recursos recebidos. Estados, como o Rio de Janeiro, o maior beneficiário, reivindicam os recursos, proclamam “direitos adquiridos” para seu orçamento e, ao mesmo tempo outorgam isenções fiscais para empresas, sem justificativas e sem transparência. Transformam os recursos tomados ao futuro em generosidades empresariais…
O caminho correto seria aplicar de forma direta e lógica o princípio constitucional inscrito no caput do Artigo 20, reproduzido acima, segundo o qual o petróleo pertence à União, portanto a todos os brasileiros. Deveria ser direcionado para acabar com as assimetrias sociais e regionais, e permitir a construção de um País, para todos. E não somente os royalties, fração pequena do valor total do petróleo.
Royalties, no Brasil, são calculados sobre o volume de petróleo produzido e o preço de referência do campo no mês de apuração. É um valor condicionado pelo mercado internacional e cai quando o preço do petróleo é desfavorável. A quantidade a ser paga em um mês de preço baixo pode ser frustrante para as finanças do beneficiário, seja estado, município ou União. O valor mais alto do total de royalties e participações especiais gerado no país, no período registrado, foi atingido no ano de 2008: cerca de R$ 11 bi de royalties e 12 de participações. É muito, mas comparado à renda potencial que o Pré-sal pode gerar, representa uma fração marginal.
Privilegiar a batalha em torno dos royalties e alçá-la ao centro do debate sobre o pré-sal é perder foco e tempo precioso, privando a sociedade brasileira de conhecer e escolher o futuro dos recursos que são seus… Do valor adicionado líquido pela Petrobras – hegemônica no setor petrolífero do país – à economia brasileira, a maior parte fica retida pelos governos via impostos e participações, ou seja, grande parte da renda petroleira já fica com o Estado, em suas várias instâncias. É necessário pensar estrategicamente a apropriação e distribuição destes montantes, para que sua destinação responda a objetivos mais abrangentes e de longo prazo, reduzindo a concentração e ampliando os benefícios para toda a sociedade.
*Ildo Sauer é um dos novos colunistas do site da CartaCapital
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